Descobri em cima da chuva um milagre —
pensava Joana —, um milagre partido em estrelas grossas, sérias e brilhantes, como
um aviso parado: como um farol. O que tentam dizer? Nelas pressinto o segredo,
esse brilho é o mistério impassível que ouço fluir dentro de mim, chorar em
notas largas, desesperadas e românticas. Meu Deus, pelo menos comunicai-me com
elas, fazei realidade meu desejo de beijá-las. De sentir nos lábios a sua luz,
senti-la fulgurar dentro do corpo, deixando-o faiscante e transparente, fresco
e úmido como os minutos que antecedem a madrugada. Por que surgem em mim essas
sedes estranhas? A chuva e as estrelas, essa mistura fria e densa me acordou,
abriu as portas de meu bosque verde e sombrio, desse bosque com cheiro de abismo
onde corre água. E uniu-o à noite. Aqui, junto à janela, o ar é mais calmo.
Estrelas, estrelas, zero. A palavra estala entre meus dentes em estilhaços
frágeis. Porque não vem a chuva dentro de mim, eu quero ser estrela. Purificai-me
um pouco e terei a massa desses seres que se guardam atrás da chuva. Nesse
momento minha inspiração dói em todo o meu corpo. Mais um instante e ela
precisará ser mais do que uma inspiração. E em vez dessa felicidade asfixiante,
como um excesso de ar, sentirei nítida a impotência de ter mais do que uma
inspiração, de ultrapassá-la, de possuir a própria coisa — e ser realmente uma
estrela. Aonde leva a loucura, a loucura. No entanto é a verdade. Que importa
que em aparência eu continue nesse momento no dormitório, as outras moças
mortas sobre as camas, o corpo imóvel? Que importa o que é realmente? Na
verdade estou ajoelhada, nua como um animal, junto à cama, minha alma se
desesperando como só o corpo de uma virgem pode se desesperar. A cama
desaparece aos poucos, as paredes do aposento se afastam, tombam vencidas. E eu
estou no mundo solta e fina como uma corça na planície. Levanto-me suave como
um sopro, ergo minha cabeça de flor e sonolenta, os pés leves, atravesso campos
além da terra, do mundo, do tempo, de Deus. Mergulho e depois emerjo, como de
nuvens, das terras ainda não possíveis, ah ainda não possíveis. Daquelas que eu
ainda não soube imaginar, mas que brotarão. Ando, deslizo, continuo, continuo...
Sempre, sem parar, distraindo minha sede cansada de pousar num fim. — Onde foi
que eu já vi uma lua alta no céu, branca e silenciosa? As roupas lívidas
flutuando ao vento. O mastro sem bandeira, ereto e mudo fincando no espaço...
Tudo à espera da meia-noite... — Estou me enganando, preciso voltar. Não sinto
loucura no desejo de morder estrelas, mas ainda existe a terra. E porque a
primeira verdade está na terra e no corpo. Se o brilho das estrelas dói em mim,
se é possível essa comunicação distante, é que alguma coisa quase semelhante a
uma estrela trêmula dentro de mim. Eis-me de volta ao corpo. Voltar ao meu corpo.
Quando me surpreendo ao fundo do espelho assusto-me. Mal posso acreditar que
tenho limites, que sou recortada e definida. Sinto-me espalhada no ar, pensando
dentro das criaturas, vivendo nas coisas além de mim mesma. Quando me
surpreendo ao espelho não me assusto porque me ache feia ou bonita. É que me
descubro de outra qualidade. Depois de não me ver há muito quase esqueço que
sou humana, esqueço meu passado e sou com a mesma libertação de fim e de
consciência quanto uma coisa apenas viva. Também me surpreendo, os olhos
abertos para o espelho pálido, de que haja tanta coisa em mim além do conhecido,
tanta coisa sempre silenciosa. Por que calada? Essas curvas sob a blusa vivem
impunemente? Por que caladas? Minha boca, meio infantil, tão certa de seu
destino, continua igual a si mesma apesar de minha distração total. Às vezes, à
minha descoberta, segue-se o amor por mim mesma, um olhar constante ao espelho,
um sorriso de compreensão para os que me fitam. Período de interrogação ao meu
corpo, de gula, de sono, de amplos passeios ao ar livre. Até que uma frase, um
olhar — como o espelho — relembram-me surpresa outros segredos, os que me
tornam ilimitada. Fascinada mergulho o corpo no fundo do poço, calo todas as
suas fontes e sonâmbula sigo por outro caminho. — Analisar instante por instante,
perceber o núcleo de cada coisa feita de tempo ou de espaço. Possuir cada
momento, ligar a consciência a eles, como pequenos filamentos quase
imperceptíveis mas fortes. É a vida? Mesmo assim ela me escaparia. Outro modo
de captá-la seria viver. Mas o sonho é mais completo que a realidade, esta me
afoga na inconsciência. O que importa afinal: viver ou saber que se está
vivendo? — Palavras muito puras, gotas de cristal. Sinto a forma brilhante e
úmida debatendo-se dentro de mim. Mas onde está o que quero dizer, onde está o
que devo dizer? Inspirai-me, eu tenho quase tudo; eu tenho o contorno à espera
da essência; é isso? — O que deve fazer alguém que não sabe o que fazer de si?
Utilizar-se como corpo e alma em proveito do corpo e da alma? Ou transformar
sua força em força alheia? Ou esperar que de si mesma nasça, como uma
conseqüência, a solução? Nada posso dizer ainda dentro da forma. Tudo o que possuo está
muito fundo dentro de mim. Um dia, depois de falar enfim, ainda terei do que viver?
Ou tudo o que eu falasse estaria aquém e além da vida? — Tudo o que é forma de
vida procuro afastar. Tento isolar-me para encontrar a vida em si mesma. No
entanto apoiei-me demais no jogo que distrai e consola e quando dele me afasto,
encontro-me bruscamente sem amparo. No momento em que fecho a porta atrás de
mim, instantaneamente me desprendo das coisas. Tudo o que foi distancia-se de
mim, mergulhando surdamente nas minhas águas longínquas. Ouço-a, a queda.
Alegre e plana espero por mim mesma, espero que lentamente me eleve e surja verdadeira
diante de meus olhos. Em vez de me obter com a fuga, vejo-me desamparada,
solitária, jogada num cubículo sem dimensões, onde a luz e a sombra são
fantasmas quietos. No meu interior encontro o silêncio procurado. Mas dele fico
tão perdida de qualquer lembrança de algum ser humano e de mim mesma, que
transformo essa impressão em certeza de solidão física. Se desse um grito —
imagino já sem lucidez — minha voz receberia o eco igual e indiferente das paredes
da terra. Sem viver coisas eu não encontrarei a vida, pois? Mas, mesmo assim,
na solitude branca e limitada onde caio, ainda estou presa entre montanhas
fechadas. Presa, presa. Onde está a imaginação? Ando sobre trilhos invisíveis. Prisão,
liberdade. São essas as palavras que me ocorrem. No entanto não são as
verdadeiras, únicas e insubstituíveis, sinto-o. Liberdade é pouco. O que desejo
ainda não tem nome. — Sou pois um brinquedo a quem dão corda e que terminada
esta não encontrará vida própria, mais profunda. Procurar tranqüilamente
admitir que talvez só a encontre se for buscá-la nas fontes pequenas. Ou senão
morrerei de sede. Talvez não tenha sido feita para as águas puras e largas, mas
para as pequenas e de fácil acesso. E talvez meu desejo de outra fonte, essa
ânsia que me dá ao rosto um ar de quem caça para se alimentar, talvez essa
ânsia seja uma idéia — e nada mais. Porém — os raros instantes que às vezes
consigo de suficiência, de vida cega, de alegria tão intensa e tão serena como
o canto de um órgão — esses instantes não provam que sou capaz de satisfazer
minha busca e que esta é sede de todo o meu ser e não apenas uma idéia? Além do
mais, a idéia é a verdade! grito-me. São raros os instantes. Quando ontem, na
aula, repentinamente pensei, quase sem antecedentes, quase sem ligação com as
coisas: o movimento explica a forma. A clara noção do perfeito, a liberdade
súbita que senti... Naquele dia, na fazenda de titio, quando caí no rio.
Nenhum comentário:
Postar um comentário