terça-feira, 26 de abril de 2016

                O caminhante vagueia, ora cabisbaixo, ora rosto ereto, firme, invencível. Ora lágrimas nos olhos, de tristeza, ora de alegria triste. Sim, porque felicidade nesse mundo custa caro, e ela não existe sem o seu extremo oposto: andam de mãos dadas, talvez por isso a confusão a respeito desse tema. Não, pelo menos, a felicidade autêntica, dos que perceberam que tudo não passa de uma ilusão. Ser real onde nada existe de fato e, onde é fato que tudo existe, exige a força de um guerreiro, várias vezes impressa em obras de arte, o que mais faz parecer uma mera ficção. As dores contidas e domadas, quando não se rebelam sem mais nem menos, às vezes chegando de forma sutil até a abertura final da ferida, ou, simplesmente, de repente, como uma tempestade inesperada em um dia de sol, são seus troféus. O caminhante vagueia pelo deserto, repleto de gente, de personagens de um romance em que ele se vê como um dos principais, sem a vaidade de sê-lo: muitas vezes, desesperado, implorou pelo contrário. E, como nos livros, nas boas histórias, é ele quem carrega o peso do mundo nas costas, é ele quem cai e levanta de alturas impossíveis, quem busca e quem desiste sem saber se deveria, sem saber exatamente onde quer chegar, até chegar a algum lugar, mesmo que esse lugar seja o lugar nenhum: desde que seja anestesiador.
                Que mundo é esse, para o ser essência, onde não importa a verdade, mas sim o vencer, onde não importa mais ninguém, a não ser o si, onde, em geral, as pessoas têm receio de mergulhar nas profundezas da alma, por medo de morrerem afogadas, se é lá que estão as evidências da verdadeira vida? Mas o caminhante lhes compreende, foi lá que ele se afogou, e que até hoje não soube porque não veio a óbito, já que já chegou tão próximo, até o último segundo suportável de se viver, até o último pedaço de ar que lhe restava para manter-se vivo. Já sem forças para enfrentar os monstros que cresceram conforme o tempo foi passando, reconhecendo, enfim, suas fraquezas, compreendendo que aquela força de outrora nada mais era que uma ilusão, quando ainda vivia no mundo da ilusão, deixou-se levar, para onde o mar da alma o levasse. Imóvel, braços abertos, voltou à superfície, e deixou apenas se levar ao sabor da corrente. É impossível, ao ser, viver nas profundezas: é preciso respirar, condição nossa. Mas, mergulhar, é onde se descobre nossas fraquezas diante de tanta arrogância, substância principal para que o mundo se torne ilusório. É lá que matamos nossos orgulhos, inventados pelas modernidades eternas, construindo, pouco a pouco, o circo que vivemos. E que dor, depois de tanta luta, saber que não adianta lutar... Com o mundo. Descobriu que o mundo inteiro estava dentro dele.
                Aceita-se, pois, os absurdos. O caminhante faz o que pode para mudar, mas por ali por onde passa, e o mundo continua o mesmo. Porém, o mergulho nunca é vão. Apesar da dor triste de ver com clareza a escuridão cheia de luzes mecânicas que nos iluminam, o guerreiro se faz, e uma força, antes intocável, desconhecida, distante, agora faz parte de seu ser. A força autêntica. Deixar-se levar pela corrente parece mais com “entregar-se” quando, quem já mergulhou, sabe que é o maior ato de coragem de um ser. Já não desvia se enxergas perigos adiante. Já não se importa mais com o tamanho do perigo que está por vir: é condição sua, desde que voltou das profundezas, enfrentar... Seja lá o que for. E esses perigos, dos mais variados, nada mais são, do que inimigos mortais que nos anestesiam durante nossas vidas dentro de nós. Como existem monstros de dar medo. Mas já não há outra alternativa para o caminhante. Vagueia deserto, por aí, sem a multidão enxergar a multidão que faz estragos dentro dele. Às vezes, o que apenas enxergam, é o olhar calmo e distante, sereno, seguro, de quem já enfrentou batalhas homéricas, e ainda estar de pé. Que sensação! Ou o olhar triste de um guerreiro cansado, confundindo-lhe com um homem triste. Até ouve elogios, não pelo que passaste, mas pelo que se reflete. E essa é só mais uma dor. Isso é só um resultado, já pronto, da sensação de alívio depois de enfrentar monstros bravios. Fica na cara. E todo o caminho, o mergulhar, o meio, o que mais importa, o que nos ensina, ninguém quer, quase ninguém enfrenta, sequer enxergam: preferem, apenas, estar por perto, aplaudir com palavras. O caminhante torna-se exemplo, até. E ele, ciente de tudo isso, depois de sair das profundezas e se deixar levar, ao encontrar terra firme, ao acaso, aproveitou para se isolar nas profundezas do alto de uma montanha, e viver sua paz sozinho... A batalha final contra todos os seus monstros: é matar ou morrer. Quem sabe um dia ele volte em paz.

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