segunda-feira, 28 de maio de 2012


          Ele acordou e, como fazia de vez em quando, foi para o parque e sentou-se em um banco com seu livro nas mãos. Naquele dia ele estava pensativo demais. Lia um parágrafo e parava para refletir, olhando para longe, para o nada, passando minutos longos nesse estado. Depois de uns 40 minutos, chegaram cinco crianças enquanto ele refletia e seu pensamento foi cortado. Observou minunciosamente cada uma delas, até fechar o livro e deixa-lo de lado.
          Cinco destinos em formação estavam ali. Eram duas meninas e três meninos, observou. Eles pareciam ter uma média de dez anos de idade. Corriam, brincavam, perguntavam, choravam, caíam, aquelas coisas de criança. Mas entre eles, havia um que não corria, não brincava e que não caía. Enquanto se divertiam em um espaço enorme, na grama, ele ficava sentado observando, observando, refletindo e com um livro na mão. Isso chamou a atenção de seu Amaro, já com cinquenta e sete anos. Naquele instante, um filme sobre sua vida apareceu repentinamente em sua cabeça, outrora tão distante.
          Seu Amaro fora casado duas vezes, mas ele decidiu não se casar mais, dizendo que "enquanto a humanidade estiver nesse nível, o amor será uma coisa escassa, rara e para poucos". Muitos já chegaram para ele e citaram um milhão de exemplos de amores que deram certo. Ele apenas falava: "não é desse amor que estou falando, que, aliás, dentro do contexto ilusório que vocês vivem, isso que vocês sentem pode ser chamado de amor. Mas o que eu falo é mais além, mais profundo, e é preciso mergulhar para senti-lo (e não para enxerga-lo), pois ele não vive no raso, tão pouco em profundezas pequenas. Ele está lá no lugar mais fundo desse mar que navegamos, que chamamos de vida". O problema é justamente esse: quem vai até lá? Poucos. Parte do caminho é escuro. E os que chegam lá, passam a perceber a profundidade da vida, tão diferente dos carros que passam apressados e das pessoas que passam igualmente apressadas, e que tanto julgam os outros no seu dia-a-dia.
         E ali, não tão longe, estava o menino. Reflexivo. Totalmente diferente das outras crianças. Uma das moças que os acompanhavam (eram duas), duas vezes chegou perto dele como quem dissesse para ele ir brincar também. Nas duas vezes, disse que não. Ela, na segunda vez, pareceu perder a paciência e deixou o garoto lá mesmo. Sim, seu Amaro sabia: é difícil compreender. Aquela criança já vai crescer entre as profundezas do mar, já vai crescer um tanto distante, vai perceber coisas que poucos percebem, vai amar como poucos amam e, por está lá nas profundezas (é no raso que a sociedade funciona), vai estar só, bem assim do jeito em que ali se encontra: tudo acontecendo ao seu redor e o mundo dele ali com ele, maior que qualquer mundo ao seu redor.
         Seu Amaro quis ir lá, sentar ao lado do garoto, conversar. O garoto parecia ser de poucos sorrisos e seu Amaro sabia que poderia fazer o menino sorrir... e muito. Seu Amaro sabia que poderiam conversar horas e horas uma conversava prazerosa, mesmo ele tendo cinquenta sete anos e o garoto apenas dez ou onze. Seu Amaro sabia que aquele garoto carecia de atenção, já que, para ser notado, você tem que fazer algo notável. O problema é que para serem notados, o garoto via pessoas humilharem outras pessoas, via pessoas se acharem melhores que outras pessoas, via pessoas com uma necessidade enorme de demonstrar poder sobre outras pessoas, ou ainda, via pessoas que não cometiam mal algum, mas o outro era apenas "o outro" que, mesmo que houvesse diálogo e até carinho, tudo não passava de um jogo de intresses com bastante sentimento envolvido. Quando se há amor, mesmo que você não tenha feito algo que seja notável, mesmo assim será notado. "Cadê então o amor que tanto me falam?", perguntou-se seu Amaro. Se amassem mesmo o menino, iam sentar ao seu lado e conversar com ele e deixar ele falar o que ele pensa, o que ele sente e porque que ele era daquele jeito. Mas quem iria ouvir uma criança de dez anos... esquisita?
         Seu Amaro tinha certeza que os pais daquela criança viviam preocupados, procurando soluções para aquele "problema". Seu Amaro nem sabia que aquele garoto já frenquentou dois psicólogos e, mesmo assim, permanecia assim, desse mesmo jeito. De repente, parecia que ia cair uma chuva e todos correram para se proteger, menos seu Amaro e o garoto. Depois de poucas gotas, mesmo com o céu totalmente coberto, a chuva parou. De longe, seu Amaro sorriu em direção ao garoto e o garoto também sorriu. Ele então, finalmente, se levantou e foi até o banco em que seu Amaro se encontrava. Ele então fez umas perguntas básicas para o garoto e logo em seguida perguntou: "Que livro você está lendo?" E o garoto mostrou a ele: "1984", de George Orwell. Seu Amaro ficou impressionado duas vezes: uma com um garoto de onze anos lendo esse livro e outra por ser exatamente o livro que ele estava lendo, já pela terceira vez. E a tarde de seu Amaro foi uma das mais agradáveis depois da última separação há cinco anos atrás. Antes de ir embora, o garoto comentou com ele: "aquela moça ali é minha tia e diz que sou muito quieto, o mais quieto de todos. De fato, ela não me conhece. Não preciso explicar para o senhor que sou mais inquieto que todos os outros juntos, incluindo ela". Não precisa me chamar de senhor, falou seu Amaro. E ficaram ali conversando e rindo juntos até sua tia, um tanto assustada e reclamando (o que você estava fazendo aí com esse senhor? Onde já se viu falar com estranhos?), chama-lo para ir embora. Ele então se levantou, foi andando e sem se importar com os protestos de sua tia, olhou para trás rindo e piscou o olho, o que fez também seu Amaro. Ali começava uma amizade que continuou através de cartas e encontros nesse mesmo parque, e que durou até à morte do pianista que voltou para casa sorridente e mais reflexivo do que quando chegou ao parque. Foi um dia lindo para seu Amaro.

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