Eram
2:37h. O álcool percorria-lhe o sangue, mas estava extremamente lúcida,
sozinha, enquanto descia a rua movimentada, conhecida pela noite em que abriga
todas as tribos, pessoas de todos os tipos e de todas as idades. Num instante,
lembrou do garçom grosseiro, não com ela, mas com duas pessoas que sentavam em
sua mesa ao lado. Por nada, por muito pouco, começaram a discutir. As duas
pessoas, no entanto, tiveram uma grande participação em provocar a ira do
garçom. No fundo, pensou, os três estavam errados... E ela no meio do tiroteio.
Foi quando decidiu pedir a conta, chegou ao seu limite. Não gostava de sair de
casa, mas às vezes saía, sempre sozinha. Gostava dessas doses de absurdo, só
para sentir mais profundamente, que o seu melhor caminho, era mesmo a solidão.
Enquanto descia
a rua distraidamente, olhando para o chão, indiferente a tudo ao seu redor,
passou por um sujeito que usava uma jaqueta surrada, enquanto recolhia latas no
chão sujo. Ele gracejou: “Como você é linda”. Ela sorriu carinhosamente olhando
para ele enquanto continuava com seus passos lentos, quando, de súbito, voltou
e deu-lhe um abraço. Depois voltou a seguir em frente e, se ela voltasse seu
rosto para trás, iria ver o sujeito numa espécie de divagação, de surpresa, de
encanto, com um sorriso no rosto como há muito não sorria.
Mais
adiante, bem próximo de onde ela caminhava, uma confusão se formava, entre
empurrões e agressões verbais. Um deles, ao ser empurrado, chegou a esbarrar
nela, fortemente, mas, sem se voltar para trás, continuou seu caminho. Logo em
seguida, olhou para o outro lado da rua e viu uma prostituta bravejando contra
alguém, como se tivesse sido agredida ou roubada. Mas ela nem olhou para onde
se dirigiam as palavras raivosas. Continuava seu caminho. Os carros, inúmeros
seres da metrópole, não paravam de passar. Ela não interrompia seus passos. Não
pensava em nada. Apenas
ia... Tudo que ela queria, era chegar logo em casa.
Ao
dobrar uma esquina, numa rua um pouco escura, uma multidão de jovens se
aglomerava pelas calçadas, e o barulho das conversas e gritos se misturavam com
as buzinas e os motores dos carros. Olhando-os, não viu diferença nenhuma entre
eles e os carros, a não ser, a carcaça. Fez essa comparação em sua cabeça e
sorriu. Antes, esses pensamentos a deixavam triste ou com raiva da vida. Mas
depois, aprendeu. Aceitou sua condição de ser só e, salvo alguns instantes de
lamento, passou a divertir-se com suas divagações. Já não tinha mais casa entre
os seres de sua espécie, a não ser um apartamento pequeno e bagunçado, que servia-lhe,
apenas, para abrigar seu corpo. Já não tinha mais par, não tinha quem a entendesse
ou quem quisesse ouvir o que ela tinha para dizer. Ia muito além do que ela
via. Era a mesma coisa que os outros viam. Mas os outros só enxergavam... Ela
mergulhava entre as entrelinhas.
Nessa
mesma rua, passou por dois jovens, um bêbado ajudando o outro a vomitar. Era
esse o ápice da liberdade deles, pensou. Mas não julgou como, aliás, não fazia
a ninguém... Apenas constatava os fatos. Eram jovens e ainda estavam se
procurando, se é que estavam se procurando ou só fugindo, justamente, deles
mesmos. Mas nada disso importava mais. Continuando seus passos, poucos segundos
depois, um rapaz, provavelmente bêbado e/ou drogado também, dirigiu-se a ela
gritando, perguntando quanto era o programa, era essa a diversão dos quatro
rapazes que estavam em um carro. Ela não olhou, continuou indiferente, mas pode
ouvir o riso de todos dentro do carro, apesar do som bem alto, para chamarem a
atenção por onde passavam. Era esse o ápice da liberdade deles, pensou
novamente. Um outro rapaz, sentado no banco de trás, ainda completou: você quer
enganar quem com essa carinha? Venha gozar com a gente, você não vai se
arrepender. E riram novamente. E ela pensou novamente: sou eu, justamente, que
não estou querendo enganar ninguém.
O
carro foi embora, ela chegou em uma rua onde tinha menos movimento, e já
começou a sentir um pouco de paz. Ainda cruzou com um sujeito que mexia em uma
lixeira em busca de comida, o cheiro dele logo denunciava que não tomava banho
há um bom tempo, ao que ela falou ao passar por ele: Boa noite, querido! O
sujeito olhou para ela e resmungou alguma coisa, como se o que ela tivesse lhe
dito fosse uma agressão. Continuando seus passos, finalmente chegou ao prédio
onde morava. Uma sensação de alívio percorreu-lhe o corpo, como quando o
sujeito está em uma situação de perigo em um lugar bem alto e finalmente chega
o resgate para salvar sua vida, como quando uma embarcação naufraga em alto-mar
e, horas depois de aflição, passa um outro barco para também salvar aquelas
vidas. Lá, sentia-se feliz, sentia-se segura, sentia-se aliviada. Lá, ela não
precisava presenciar coisas que já não faziam parte do seu mundo há um bom
tempo.
Subiu as
escadas, abriu a porta, e jogou-se no sofá, da mesma forma que chegou, sem
tirar a roupa, apenas suas sandálias rasteiras. Quase deitada, quase sentada, quase imóvel, olhava
o teto e as imagens dos minutos anteriores vinham-lhe à mente. Em outros
momentos, apenas não pensava em nada, como se curtisse, como se sentisse em
suas entranhas, o alívio de estar ali, longe da rua movimentada. Às vezes, um
riso pequeno, mas não sem profundidade, surgia-lhe no canto da boca. Em outros
momentos, sentia um aperto no peito, e uma lágrima chegou a lhe fazer
companhia. Ficou quase meia hora nesse estado. Às vezes virava o rosto para o
lado, em direção à janela, mas só via prédios, pequenos e enormes, esse era o
ápice do horizonte de onde ela morava. Quase não dava para ver o céu, tinha que
se esforçar, coisa que ela não estava disposta naquele instante. Pensava,
pensava, pensava... Em
nada... Apenas estava ali, para que as horas seguissem, como
se ela pudesse sentir a contagem regressiva de sua vida, louca para chegar o
momento em que tudo isso fosse acabar.
Finalmente,
levantou-se, tomou um banho e pôs apenas uma camiseta grande, quase um vestido, permanecendo nua por baixo.
Acendeu o abajur, ligou o som bem baixo, fechou um baseado e começou a fumar. E
enquanto seus sentidos relaxavam com o efeito da fumaça, bem acima do abajur,
na parede, escrito por ela mesma, fitava versos de Fernando Pessoa:
Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?
Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!
(...)
Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho.
Outras
lágrimas desceram. Mas não era de dor, e sim, de um alívio que só seres
estranhos como ela podem sentir. Ficou assim até amanhecer, relaxando, ainda praticamente imóvel, enquanto
sua alma gozava... Pensou que o que ela sentia, naqueles instantes, era o que
todos, na rua, no fundo buscavam... Mas, e daí? Cada um tem seu caminho... Ficou
assim, até deixar-se adormecer. Quando acordou, sentiu-se renovada, como se
tivesse voltado de uma guerra e, finalmente, estava em casa, em paz... Paz... Era
tudo que ela queria e precisava... E só. E que ela só conseguia...............
Sozinha.